19 outubro 2007

Documentário manipulativo



Fala-se muito de ética quando se fala sobre documentário - como ainda ontem a realizadora dinamarquesa Eva Mulvad na discussão do seu filme Enemies of Happiness - e essa ética é referida geralmente às pessoas filmadas. Mas igualmente importante será a ética relativa ao espectador - que evita que um documentário seja manipulativo e dá ao espectador uma prova de confiança. Não é o que encontramos nos dois filmes que ontem abriram o Doclisboa.

Taxi to the Dark Side, de Alex Gibney, é um documentário do mais televisivo que há e altamente manipulativo: frases de poucos segundos retiradas aos intervenientes - que por breves momentos surgem do negro qual oráculos - são montadas fora do seu contexto discursivo - segundo uma narrativa precipitada cuja lógica nos escapa e nos conduz num labirinto argumentativo cujo objectivo não é apelar ao nosso raciocínio (é tudo demasiado rápido) mas às nossas emoções - aliás, ao nosso horror, que ao fim de pouco tempo se naturaliza e começa a aceitar o que antes - verbal e abstractamente - nos parecia intolerável (as torturas exercidas sobre prisioneiros iraquianos) e por via da exposição se torna mais tolerável (pelo menos aos olhos). (Confesso que não aguentei ver o filme até ao fim.)

Além disso, acho nojento o recurso a um género de banda sonora, que não chega a ser música, mas uma espécie de cama harmónica (um tique do actual cinema mainstream) que pretende subliminarmente suscitar emoções no espectador - expectativa, suspense, tristeza, melancolia, resignação, etc.

Apesar de ter achado Enemies of Happiness um filme muito interessante, também não gostei do uso que faz do mesmo tipo de banda sonora, porque é uma forma de hipocrisia o duplo discurso que ostenta: por lado diz ao espectador: olha, vê como é a realidade; por outro, junta-lhe um tempero de emoçõezinhas adequadas à sua cultura americanizada, para o fazer sentir mais intensamente - como se não bastassem as emoções da protagonista, suficientemente interessantes e reveladoras sobre o que é ser mulher afegã. Acho que isto é um desrespeito pelo espectador.
Também não gostei de ver que, quando Malalai pede para não ser filmada, a câmara continue ligada para apanhar as lágrimas furtivas da heroína, garantindo o momento de clímax emocional que todo o cinema comercial almeja. O que mostra uma falta de honestidade fundamental - a de não ter parado de filmar quando a isso foi instado - e a falta de vergonha em mostrar esse desrespeito.

É o estilo documentário de emoção (que é muito cultivado na América e, sim, no cinema dinamarquês). Para mim, é um embuste. São filmes montados a uma cadência a que as muitas perguntas que se podem suscitar na mente do espectador nunca têm respostas. São filmes construídos para evitar que o espectador pense alguma coisa senão o que está previsto. São feitos de forma a anular o pensamento crítico. São filmes anti-pensamento. São manipulativos. São indecentes.

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