27 outubro 2007

Documentário político



É certo e aceitável que um festival de documentário – e tendo o mérito de se assumir como político – englobe muitos filmes que devem mais ao seu conteúdo do que devem à arte cinematográfica. Não é de estranhar portanto que tenham sido muitos aqueles que vi de onde parece ter desaparecido qualquer preocupação com o trabalho de câmara. É que hoje qualquer pessoa com acesso a uma câmara barata consegue filmar os temas mais quentes: guerras, prisões, torturas, ditaduras, miséria, escravatura, prostituição, etc.

Porém, a minha insatisfação não advém apenas do uso imponderável e caótico da câmara, mas também da falta de ponderação prévia ou posterior ao momento da filmagem, que se reflecte numa construção ou sequência expositiva aparentemente arbitrária e subordinada a um objectivo meramente mostrativo: vejam o que eu vi. Há filmes onde não encontrei uma intenção e muito menos um olhar. São filmes onde parece que só interessa o que está do lado de lá, e não interessa a mediação que alguém faz. Ora um filme, como qualquer outra forma de comunicação, tem obrigação de ser consciente sobre o seu discurso.

O caso torna-se mais grave quando o documentário quer ser “político” e nesse propósito deve saber assumir uma ética. O filme These Girls, sobre prostitutas adolescentes do Cairo, apresenta cenas fortíssimas e preocupantes. Em várias ocasiões aparece por lá uma espécie de assistente social espontânea, uma mulher caridosa a quem uma das raparigas diz que quer deixar a rua. Imediatamente, o plano é cortado e saltamos para outra situação qualquer. Fica pendente a continuação daquele diálogo: o que lhe terá respondido a amiga? Não é compreensível que a realizadora (que esteve presente no Doclisboa, mas a cujo debate não pude assistir) corte uma cena daquelas sem nos dar a conhecer a resposta, ou a falta de resposta, àquele apelo. Porque o assunto do filme e a sua intenção última não pode ser senão a de que querer salvar aquelas raparigas – independentemente de isso ser ou não ser possível. E como o filme não nos diz se é ou não, presumimos que não. O que é imperdoável é que a questão central seja omitida por um mero corte irresponsável.

These Girls fica-se pelo charme da denúncia e assim percorre os maiores festivais do mundo e dele se dizem coisas incríveis, como que mostra a alegria das jovens prostitutas – as pobres que se drogam com cola para suportarem dormir no meio da rua e sofrerem o estigma que as cicatrizes com que foram marcadas na cara assinalam e as várias violentações de que são alvo. Diz-se ainda que o filme foge ao sentimentalismo e evita as armadilhas da culpa ou da piedade barata. Que ideia é essa de que sentir pena é uma visão adulterada do primeiro mundo? Essa pena dá responsabilidades. Mas a hipocrisia parece mais confortável.

A partir daqui, levantam-se ainda outras questões – que incidem também sobre o excelente e non plus ultra Papel não embrulha brasas de Rithy Panh, um filme de uma delicadeza enorme, feito com prostitutas no Cambodja e encenado já quase como uma ficção, numa linha equiparável à de Pedro Costa. A questão que aqui ponho já não é a da forma ou a da distinção entre o melhor e o pior cinema, mas a questão da relação do realizador ao real que filma. A pergunta é: o que fez a produção destes filmes – o último financiado com dinheiros europeus – para ajudar aquelas raparigas, cuja condição miserável é resultado da pobreza extrema e insuperável. Qualquer filme que se defronte com uma realidade destas tem a obrigação de revelar, dentro do próprio filme, qual o seu compromisso perante essas pessoas que lhe dão a vida. Nenhum deles o faz. Esta falta de ética faz-nos duvidar da sua intenção realmente política: a de ser actuante sobre o mundo.

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