22 janeiro 2007

Duas causas



Duas Causas é um filme de 1952, do realizador Henrique Campos, que põe em evidência o problema do aborto naquela época. É uma história de família pequeno-burguesa preocupada em casar bem a filha crescida e encaminhar o filho estudante de direito, família que inclui ainda uma rapariga enjeitada, humildemente grata por ser protegida e tratada carinhosamente "como se fosse da família", e por quem se enamora o rapaz, um tanto estouvado, que logo a desdenha, enquanto procura casamento mais conveniente, para subir de classe...

Entretanto, como ficou grávida, a "ingénua" (personagem-tipo do cinema dessa época) vai ter que abandonar a casa, para não envergonhar a família. O pater familias fica furioso com o canalha que desonrou a menina, sem suspeitar que era o seu próprio filho, o que ela também nunca revela, assumindo a desonra sozinha.

O rapaz entretanto defende a sua primeira causa em tribunal: a de uma rapariga que tentou sem sucesso interromper uma gravidez, ou seja, atentou contra o filho que traz em si e vai ser julgada por isso. Como advogado defende que não é ela a culpada mas o sim o homem cobarde que a abandonou naquele estado e a deixou desesperada e sem ter como sustentar a futura criança. A sua eloquência comove todo o auditório e consegue suscitar o arrependimento do homem, presente na plateia, que assume a culpa e promete casar com a mulher.

Depois de muito felicitado por todos e recebendo os agradecimentos do casal reconciliado, o herói dá-se conta da contradição entre a causa alheia que defendeu e o seu próprio egoísmo, e os remorsos levam-no a casar com a namorada grávida. É uma reconversão quase artificial, porque a contradição interna é meramente esquemática, mas tem uma função ideológica aqui: sanar a "dialéctica" masculina entre a fuga e o dever, se tudo entrar na ordem estabelecida e reconhecida do casamento. O que foi abuso, desonestidade, arrivismo ou hipocrisia, tudo isso se resolve desde que as personagens aceitem o seu lugar na sociedade.

O filme não pretende apresentar um problema, nem evidenciar as contradições interiores das personagens, pretende apenas apresentar o casamento como solução óbvia para o problema da gravidez, mandando o espectador para casa com as certezas no lugar. A asneira é bem tolerada, desde que aconteça dentro da ordem social.

Hoje, que o casamento já não é um imperativo social, ser mãe solteira já não é um estigma (como ainda há 30 anos), deixou de haver filhos “naturais” e o divórcio é frequente, na questão do aborto continua a responsabilizar-se moralmente a mulher, esquecendo-se que há por certo um homem também responsável, já não pela desonra, mas pela “falta de cuidado” e frequentes vezes pelo desinteresse que demonstra pelo produto “vivo” dessa sua inconsciência, fraqueza ou deslize. É o caso, de que tanto se fala, do tal pai biológico que acordou tarde de mais para a criança que não queria, e que só depois decidiu reclamar...

Em 50 anos mudou muita coisa: as mulheres são livres e independentes, já ninguém espera a tutela dos homens, facilitando-se a desresponsabilização masculina em relação à procriação natural, embora haja por lei averiguações de paternidade. Mas mantém-se igual a penalização criminal do aborto centrada nas mulheres, sobre quem recai toda a culpabilidade. É isso que falta mudar.

2 comentários:

Anónimo disse...

Passem pelo nosso blog e deixem a vossa opinião. Se quiserem enviar a vossa opinião seja pelo SIM ou pelo NÃO enviem para pormirandela@hotmail.com

blog Por Mirandela, o caminho certo da cidadania

www.pormirandela.blogs.sapo.pt

Miguel Catarino disse...

Um belo filme, de que já ouvi falar muitas vezes, e foi um dos primeiros filmes a serem exibidos na RTP.
Sinceramente, a sua opinião é justa, e bem construída, mas acho que se trata de um filme que retratava à época uma geração que não tolerava de maneira nenhuma o aborto, e que apresentava o casamento sempre como a solução mais adequada. Mas ao mesmo tempo que o filme faz essa propaganda, também apresenta uma opção de vida, e em parte evidencia os estados de espírito das personagens, desconfio eu. Tratava-se de outra época, em que o que está certo para a maioria das pessoas dos dias de hoje, era um verdadeiro crime para as mentalidades fascistas de outrora.
E no que respeita ao aborto, tal deve ser feito sem impedimento da lei, e sem criminalizações estúpidas, caso assim ela o deseje, e sempre num período antecedente aos três ou quatro meses de gravidez, período em que o feto não está muito desenvolvido, segundo o que estudei. E o aborto também pode ser usado em casos de emergência, como por exemplo, filhos que são frutos de violação ou pedofilia. Pode ser uma opinião complicada e controversa, mas é a minha opinião. Espero que ninguém se ofenda.