18 dezembro 2006

Éticas



A ética que se tem e que se usa é muitas vezes uma questão de consciência pessoal. Em certos campos profissionais, por exemplo, no jornalismo ou na medicina, há regras estabelecidas, códigos de conduta. Noutras áreas, onde as práticas são mais livres e mais individuais, não existem regras predefinidas – é o caso do documentário.

Mas pode afirmar-se que, em documentário, a questão ética está presente em todas as fases de trabalho: desde os contactos pessoais prévios, durante a filmagem e em permanência durante a montagem, na decisão de escolher/omitir uns ou outros planos, e na definição de um limite interior ao filme – que geralmente se preocupa em respeitar a imagem daqueles que confiaram no realizador. E cada realizador, à sua maneira, procura honrar essa relação de confiança - sem perder a capacidade crítica e a distância de que depende a sua independência.

Mas a ponderação ética que percorre este processo não tem, rigorosamente, nada a ver com a obtenção de autorizações escritas ou outras – mero proforma que visa acautelar o realizador/produtor de possíveis diferendos futuros. A autorização é uma espécie de garantia legal, que funciona para ambos os lados: os participantes sabem também que há limites ao uso das imagens cedidas.

Mas nada impede um realizador, já detentor de autorizações, de forçar os limites da confiança e ofender os participantes de um filme: foi o que aconteceu com o recente Borat, por exemplo. Foi o que aconteceu com Wiseman, cujo documentário Titicut Follies (1967), filmado num hospício prisional, esteve proibido nos EUA durante 25 anos. O facto de possuir licença para filmar, dentro da instituição, não o salvou da proibição. Mas a falta de ética estava na instituição filmada, não na denúncia do realizador.

O documentário “Esta televisão é sua” (1997), filmado por Mariana Otero na SIC, apesar de ter todas as autorizações prévias e a aprovação após a montagem final, encontrou problemas quando surgiram algumas críticas, em jornais franceses, e os dirigentes daquela televisão perceberam que aquilo, que a eles lhes parecera um retrato natural, podia ser interpretado de forma muito negativa por quem estava de fora. Sentiram-se enganados e conseguiram cancelar a ante-estreia portuguesa do filme. No seguimento de vários protestos nos jornais, tiveram que ceder e passar o filme a altas horas, mas antecedido duma agressiva entrevista com a realizadora.

Estes problemas surgem na fronteira, difícil de situar, entre a auto-imagem que os participantes têm de si próprios (inevitavelmente cega) e a imagem que os outros vêem neles (frequentemente moralista ou caricatural). O documentarista trabalha sobre esta ambiguidade como limite ético, como no fio da navalha.

Mas mesmo quando um filme é inequivocamente benévolo – como é o caso do documentário Ser e Ter (2002) de Philibert – podem surgir problemas. Aqui, não porque os participantes não se reconhecessem no seu retrato, mas porque queriam ter maior participação dos lucros inesperados que o sucesso do filme trouxe. O problema foi que o realizador não se tinha acautelado com uma autorização escrita que o defendesse de desentendimentos futuros. Podemos espantar-nos que um documentarista tão experiente, que fez pesquisa para esse filme durante um ano até encontrar a escola ideal e o professor ideal, tivesse sido tão imprudente. Mas, como o tribunal reconheceu, a autorização de filmar era tácita, na medida em que a presença da câmara na sala de aula ou as entrevistas pressupunham o consentimento informado dos participantes.

Podemos ainda perguntar o que teria custado assinar um papel... Não sabemos. Mas muitas vezes, quando há uma relação de confiança pessoal, introduzir a formalidade de um papel legalista é o suficiente para criar desconfiança e alterar todo o equilíbrio conseguido e necessário à disponibilidade dos participantes e à verdade do filme. E um documentarista lida em permanência com esse risco: o de ganhar ou perder a confiança daqueles que filma.

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