06 julho 2006

Passado e futuro do documentário

A revista Docs.pt, editada pela Apordoc e “já nas bancas”, fez um mini-inquérito a alguns realizadores-produtores de documentário, mas como, por falta de espaço, essas respostas não entraram na revista, aqui se publicam.

1. Qual o balanço que faz da produção do documentário de criação em Portugal, desde 1996, ano em que foi lançado o primeiro concurso autónomo de apoio a este género pelo ICAM?

Leonor Areal - Em dez anos, o apoio estatal ao documentário, a criação da Apordoc, os eventos e festivais em torno do documentário e a acessibilidade do video digital, permitiram criar uma nova vaga de documentaristas e de público do documentário. Só é de lamentar que as televisões se tenham fechado no seu gueto dos formatos e - a RTP nomeadamente - não emita sequer os documentários que eles próprios possuem por força do apoio protocolar com o ICAM.

Miguel Clara Vasconcelos - Em 1996, o documentário era uma manifestação cultural da Malaposta e hoje está no Grande Auditório da Culturgest. O crescimento da produção de documentários, em Portugal e no mundo, deve-se em grande parte à acessibilidade dos meios técnicos audiovisuais, em paralelo com o crescimento do interesse por este género cinematográfico, tanto do público directo como do público televisivo. Havia em Portugal uma "falta de real" e o documentário vem preencher essa lacuna.

Catarina Mourão - Se pensarmos no panorama do documentário criativo em Portugal em 1996 e agora 2006 é evidente que muita coisa mudou. Não só se criou um público ou públicos para o documentário criativo / cinematográfico (na altura limitado ao público dos Encontros de Cinema Documental da Malaposta), como existe da parte de alguns realizadores e produtores uma clara aposta no documentário. Isto é, existem realizadores e produtores que tentam ter uma produção regular de documentário criativo apesar dos apoios não terem aumentado na mesma proporção do interesse despertado pelo documentário criativo. Também ao nível da formação, o documentário criativo tem cada vez mais um lugar nos planos de estudo das escolas e universidades.
Mas esta década que passou não foi uma década qualquer. Foi uma década de constante luta em que não se baixou os braços na tentativa de aumentar apoios, tornar o publico mais exigente e exigir uma maior qualidade do documentário português. No entanto se confrontarmos os resultados dessa luta com o esforço e energias investidos, o resultado é um pouco frustrante: O público do Documentário criativo aumentou, é certo. Os festivais, seminários e mostras têm uma afluência enorme. No entanto a Televisão pública continua a negar-lhe um espaço, impedindo o acesso do Documentário criativo ao grande público. Os apoios do ICAM existem e procuram ser regulares mas diminuem de ano para ano (2000, 21 projectos; 2001, 23; 2002, 16; 2003, 15; 2004, 13 e 2005, 13 projectos) Por outro lado, os projectos que os concursos do ICAM apoiam são na sua maioria abordagens bastante convencionais e os critérios de escolha continuam a insistir nas temáticas e não nos olhares. Finalmente dos projectos apoiados anualmente só um terço são divulgados e circulam nos festivais e mostras. E mesmo esses, produzidos ao abrigo do protocolo ICAM/RTP, nunca são transmitidos pela TV. Quanto aos restantes dois terços, será que existem? Por vezes surgem documentários apoiados marginalmente que surpreendem e nos deixam optimistas mas a grande maioria dos documentários produzidos no fio da navalha são muito frágeis.

2. Como é que perspectiva a produção do documentário de criação para o futuro?

Leonor Areal - Prevejo, num futuro breve, um crescimento exponencial do documentário, não acompanhado de um aumento correlativo dos recursos financeiros disponíveis, nem do interesse das televisões, cada vez menos viradas para o documentário de criação, pelo que os documentaristas terão que fazer face às inúmeras dificuldades tornando-se ainda mais criativos. Nos próximos cinco anos, o sector poderá sofrer uma crise vital devido ao excesso de produção ad-hoc e sem meios, resultando numa inundação geral de obras informes, subjectivas e caóticas, que levarão os programadores de festivais ao colapso e os realizadores à depressão profunda.

Miguel Clara Vasconcelos - Pensemos em conjunto no ciclo 2006 – 2016. O preço das câmaras de filmar estará a diminuir, o número de estúdios de pós-produção estará a aumentar e daqui a 10 anos, fazer documentários será um desporto radical onde, provavelmente, realizador é aquele que tem uma câmara e produtor é aquele que tem um computador. Não será preciso mais nada. E, da mesma maneira que há skaters profissionais, haverá realizadores e produtores profissionais. Não com a solenidade que estas profissões têm hoje, mas sim com a habilidade inerente a quem domina as novas tecnologias. Película será arte, digital será documentário. Digital de alta definição. O Estado português saberá tirar proveito disso? As produtoras saberão adaptar-se? Os realizadores quererão evoluir? ICAM, produtoras e realizadores irão, isoladamente ou em conjunto, reflectir sobre isso. Esse debate acompanha outras duas mudanças já visíveis: o aumento exponencial de pessoas habilitadas a fazer documentários e a redução substancial dos apoios estatais à produção cinematográfica. Mais câmaras de filmar, mais cursos de audiovisuais e mais festivais de cinema estão a produzir mais filmes documentais, muitos maus, alguns bons e poucos excepcionais. Vivam os excepcionais! E esperemos que se convertam em referência pública, nas escolas, nos cinemas, nas lojas e nos blogs. São os próximos filmes de referência que produzirão a cultura da década seguinte. Sem referências não há cultura e sem cultura não há país, seja o país de Afonso Henriques seja o país de Cavaco Silva.

Catarina Mourão - No futuro, uma vez garantida uma certa regularidade, essencial para experimentar e evoluír, as preocupações do Documentário criativo Português deveriam passar por encontrar soluções para realizar e produzir melhores documentários. Infelizmente as preocupações do futuro continuam a ser na sua essência as do passado. A luta continua a ser uma de sobrevivência, conseguir simplesmente apoio e visibilidade para continuar a fazer Documentário, ano sim… ano não…. ano não…. água mole em pedra dura. Talvez daqui a dez anos.

1 comentário:

Nuno Pires disse...

Obrigado por publicar este mini-inquérito aqui :)