13 julho 2006

Nós por cá



O semi-documentário “Nós por cá todos bem” (filmado em 1975 ou 1976) é um caso particular de retrato socio-cultural. O realizador Fernando Lopes volta à sua aldeia natal para entrevistar sua mãe e revelar como a mudança política do 25 de Abril quase não chegou ao campo, onde se vive como 40 anos atrás. Nas cenas iniciais da matança do porco, no amassar do pão, no registo da primeira eleição livre, ou na entrevista à mãe (feita por um “jornalista”), o filme assume a forma corrente de uma abordagem de conteúdos etno-sociológicos.

Mas logo, mudando de registo sem aviso prévio, foge aos cânones, ou às expectativas, de um documentário-tipo: com a introdução de música de Vivaldi, confere à matança do porco um carácter celebratório; com a revelação no filme da intromissão assumida da equipa de filmagem na aldeia, estabelece uma ponte simbólica entre o seu mundo e o de sua mãe; com a inserção de três quadros ficcionais – um número musical com uma criada de servir (representando a mãe, que trabalhou em Lisboa, antes de voltar à terra), a leitura de cabeceira da vida de uma santinha, e uma reconstituição da primeira visita adolescente (do realizador) a um bordel – cria um contraponto que reenvia para uma mitologia cinematográfica em regime autobiográfico, na qual ainda insere um fragmento do seu filme "Belarmino"; e com um apontamento sobre uma reconstituição num castelo medieval de um cerimonial para-americano-pagar, introduz a crítica social.

Desta amálgama de fragmentos, desiguais e desequilibrados - que Eduardo Prado Coelho (1) disse “resultar da existência de múltiplas instâncias de alteridade”, mas reconhecendo “o ar um pouco imaturo que o filme aparenta” - saí sem entender bem o filme. Só no dia seguinte aquele objecto híbrido e desconexo se arrumou na minha memória em forma de todo e então pude rever o sentido das cenas, o seu valor de contraponto simbólico – entre o campo e a cidade, entre o povo-real e uma visão burguesa da revolução – contraponto que na sequência do seu visionamento não chega a articular-se como um pensamento, como um discurso intencionado. Ao invés, aparece como repositório, um puzzle não estruturado de referências culturais díspares, confusas talvez, embora reunidas num vórtice – a existência de um cineasta que quer fazer um documentário sobre a revolução que não chegou ao campo, mas vem a fazer uma ficção de si e de sua mãe estrangeiros na cidade luxuosa, numa mistura de mitologia popular, canções revolucionárias e cultura erudita.

Apesar dos bons momentos, e mesmo percebendo-lhe uma intenção estética de collage de cacos de filme e de reconstituição de lacunas, o filme levanta imensas dúvidas. Por exemplo, a utilização de 3 câmaras para filmar a matança de 1 porco parece um excesso de meios, interessante pelo efeito experimental – a repetição da mesma cena vista de ângulos diferentes – mas chocante pela desmesura. Tal como o desajuste entre a cena da equipa montando os carris e o mero travelling de muros velhos que daí resulta. Enquanto, ao contrário, os muros novos são percorridos à velocidade de translação de um automóvel e quase não conseguimos ler as pichagens escritas, muito mais interessantes. A mise-en-abîme, intentada com o almoço da equipa de filmagem ou com a actriz ao espelho a vestir o lenço à moda da camponesa, aparece em cenas descosidas – embora pretendam justificar a mentira ficcional como substituto confessional das verdades da vida (onde o documentário não chega). Aparente tentativa de sinalização desse contraste entre um universo de origem (urbano) e um universo remoto (a aldeia) que não é desenvolvido. Porque o mundo de Lisboa (onde a mãe viveu quase 40 anos) só aparece em cenas de reconstituição ficcional – de gosto requentado – e em nenhuma outra imagem, resulta que esse território distante – onde se diz que teve origem a revolução – se revela apenas sob a forma cristalizada das memórias juvenis do realizador.

Por outro lado, o tópico da emigração, com que se inicia o discurso da mãe, não tem outros ecos senão na cantiga que toma a fórmula epistolar conhecida – nós por cá todos bem - e numa carta lida em off que não sabemos a quem pertence. Ao pretexto do inquérito sociológico em forma de história de vida, sobrepõem-se as perguntas directivas do jornalista. E o único discurso político que sobressai é o do queixume egocêntrico: “para mim a revolução não mudou nada”, sintoma - ainda actual - de uma noção de política muito pouco colectiva. Usando uma expressão idiomática equivalente, o filme bem poderia intitular-se "Vai-se andando".

Mas é este o filme que temos, mesmo com a “sua escassez de material”, mesmo se “o mais interessante ficou por filmar” (EPC: p.78). Parece que terá havido problemas de produção relacionados com subsídios diminuídos, mas as razões de produção nunca desculpam o que um filme é. E o que é: é um filme desigual, não obstante interessante. Para mim, é sobretudo interessante a revelação de uma vida campesina condenada à impossibilidade e ao sentimento de solidão - totalmente desfasada dos tempos altos da revolução.

Nota: Em 1996, Lopes voltou à aldeia para filmar de novo sua mãe no filme "Se Deus quiser", produzido para comemorar ainda o 25 de Abril.

(1) Coelho, Eduardo Prado. Vinte anos de Cinema Português – 1962-1982. Lisboa: ICLP/Biblioteca Breve, 1983, p.76

Visto na Cinemateca a 10 de Julho por 10 espectadores entre os quais Nuno Pires que também escreveu as suas impressões no blogue Chroniques de Lisbonne.

3 comentários:

Nuno Pires disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Nuno Pires disse...

Obrigado por este ponto de vista muito mais documentado do que o meu.
A propósito da cena da matança, apesar de gostar do processo de mostrar uma cena "real" com três pontos de vista diferentes (que não são pontos de vista subjectivos de personagens, ao contrário da ficção), percebo porque falas de exagério de meios técnicos ; esta cena não justifica, mais do que outra, tal dispositivo.

Anónimo disse...

Nunca vi esse filme do Fernando Lopes (cineasta que, aliás, muito prezo pela estética da inteligência que põe nos seus planos), mas tenho quase a certeza que ele tinha razão: a matança do porco(=corpo) é um acto tão cruel, tão celta, tão grandioso, tão completo e tão cruelmente humano-completo-celta-grandioso que não se esgota nem se pode esgotar apenas num/dois pontos de vista. Agora é a voz distante da infância que irá falar:o ritual dançando dos adultos à volta do corpo do porco, um corpo porco que morre e o sangue agónico de gritos de um por/corpo moribundo não se esgota nem se pode deixar esgotar em tão poucos olhos. Experimentem, pois, ter dez anos e assistir a um ritual desse tipo. Repito: não vi nem quero ver o filme e acredito plenamente que o artifício não tivesse funcionado na altura em qeue ele filmou. No entanto, o drama "in vivo" é tão grande que ele não pode deixar de ter razão.

Sérgio Correia