22 junho 2006

Objecto, objectivo, dispositivo

Sob a ideia, abaixo referida, de que um olhar sobre o mundo implica um olhar sobre o cinema (ou seja, uma forma de fazer cinema), José Manuel Costa e Nuno Lisboa reuniram um conjunto de excertos de documentários portugueses mais ou menos recentes e convidaram os realizadores a pronunciarem-se sobre as suas abordagens do cinema-directo.

Abriu-se assim, em Serpa, a discussão de como as opções do cineasta decorrem da sua visão do mundo; ou de como o acto filmar o mundo obriga a tomar uma posição dentro do próprio cinema. Esta colocação do problema diverge um pouco da ideia mais corrente de que um olhar cinematográfico conduz a uma forma (estético-política) de olhar o mundo. Aqui interessava mais falar do processo que começa no mundo para chegar ao cinema.

O processo será: perante um objecto, ter um objectivo e definir um dispositivo - três passos para descrever um método. Desde logo se percebe que este “método” varia em função das circunstâncias, das condicionantes e das interacções de cada filme. Analisados caso a caso, todos os filmes revelam uma metodologia específica, coerente e pensada – sobre a qual falaram os cinco realizadores convidados.

Catarina Alves Costa explicou que em “Senhora Aparecida” (1994) optou por usar 3 câmaras em simultâneo para seguir 3 personagens-chave na decisão eminente de realizar-se ou não a procissão dos caixões em Lousada. Só por essa razão conseguiu registar o momento culminante desse filme, sem o qual possivelmente nem haveria filme. A realizadora atribuiu também essa conquista ao factor sorte, mas parece-me a mim que a estratégia que usou foi muito mais importante, e determinante até da decisão de prosseguirem com a procissão, porque a presença das câmaras poderá ter reforçado a revolta e a convicção dos populares contra o padre (que queria cancelar o desfile de caixões).

No seu primeiro filme, “Regresso à terra” (1992), Catarina Alves Costa salientou a proximidade aos habitantes da aldeia e a sua permanência in loco que lhe deu acesso a uma dimensão temporal diferente (vimos o excerto inicial de duas pastoras na serra, cansando-se, descansando e depois dormindo).

Catarina Mourão comentou o excerto escolhido de “A Dama de Chandor” (1998) no qual, tendo decidido dar folga ao operador de câmara naquele dia, para poder entrar na intimidade do quarto da senhora, conseguiu captar situações em que a atitude da personagem se altera nitidamente quando fala com estranhos (uma equipa de filmagem que vem fazer um répérage na sua casa) ou quando eles saem (e ela se sente de novo à vontade em frente da equipa de filmagem que já pertence à sua esfera íntima).

Acerca de “O que pode um rosto” (2002), Susana Nobre falou do dispositivo que usou para filmar as consultas médicas no hospital oncológico: a câmara centra-se só no plano do médico, ou só no plano do doente, mesmo enquanto o outro fala prolongadamente. O efeito demonstra “o que pode um rosto” exprimir em reacção ao que está a ouvir; ou ainda o efeito que podem causar as palavras do médico quando não vemos a pessoa a quem dirige tão terríveis mensagens. Sendo uma solução prática minimamente perturbadora, consegue, por este recurso minimal, representar e potenciar a violência da situação.

Acerca do meu filme “Doutor Estranho Amor” (2005), expliquei que tendo filmado sozinha, com um microfone direccional sobre a câmara, vi-me condicionada a filmar segundo o som. Como se tratava de uma turma de adolescentes em ebulição permanente, optei geralmente por enquadrar as situações de interacção segundo um eixo criado entre o primeiro plano e um segundo plano entre os quais se desenvolvia o diálogo. Para combater a dispersão natural do contexto, joguei pela antecipação e procurei as personagens mais marcantes.

De Pedro Sena Nunes, foi mostrado o final de “Entraste no jogo, tens de jogar” (1999), descrição hiperrealista de uma romaria popular, onde o plano de um miúdo tocando acordeão no alto do monte é intercalado com sucessivas vistas da vasta paisagem circundante e invadida pela música. Esta estratégia, que é de montagem, traduz um olhar direccionado e intencionalista sobre o objecto do real.

Este exercício analítico (que a alguns assistentes pareceu demasiado denso de exemplos e rarefeito em profundidade) teve, para mim, o mérito de demonstrar como as opções de método se encontram inscritas em cada filme e podem ser lidas a partir das imagens que nos são dadas. Ou seja, o olhar é uma coisa “escrita” no próprio filme, assim como a relação da equipa de filmagem com as personagens. Em documentário, é difícil as imagens mentirem - não sobre a história que contam - mas sobre quem a conta.

(Visto no Doc’s Kingdom em Serpa.)

1 comentário:

Nuno Pires disse...

"Em documentário, é difícil as imagens mentirem - não sobre a história que contam - mas sobre quem a conta."

Acho que esta frase muito interessante...