29 junho 2006

Cinema-saudade



O documentário Encontros - que abriu os encontros de Serpa sobre documentário – é como um segundo capítulo do anterior filme de Pierre-Marie Goulet, Polifonias (1997). Seguindo os traços do percurso de Michel Giacometti pelo canto popular e também as pegadas de António Reis, ainda só poeta, na memória daqueles que o conheceram, o filme assume-se como um retrato de uma “tribo” cultural, um grupo “informal” e disperso de pessoas que partilham afinidades electivas. É uma tribo de idealistas que conserva a memória de uma cultura camponesa expressa na poesia e no canto populares, ligada à terra como uma árvore de raízes seculares que se recusa a ser cortada.

O filme constrói-se por camadas: os lugares que se alternam, as personagens que revisitamos e se visitam entre si, os momentos que se confundem como fluxos intemporais. A câmara, em travelling lento quase constante, numa espécie de ralenti inverso, acusa uma imobilidade paradoxal: a de uma memória trabalhada para suster a sua presença e a do movimento da vida que se procura quase imobilizar.

É um filme sobre a memória - de um tempo que passou. E é na forma mesma do filme que se revela a estrutura dessa memória: pela reiteração de imagens (o travelling da esquina em Peroguarda, por exemplo); pelo retorno aos locais e personagens, como quem retoma a conversa no mesmo ponto; pela repetição de poemas e vozes em off; na imagem inicial que, em movimento inverso, fecha o filme; na glosa temática e estrutural do filme Polifonias; na repetição da viagem à Córsega, qual peregrinação; por fim, na sua matéria prima, a poesia e o canto populares, que corporizam a evocação de um tempo cíclico e presentificam ad eternum o sofrimento dos camponeses. Nesta circularidade interna está contida a forma cinemática da memória – aqui nitidamente feita da matéria da saudade.

António Reis enquanto cineasta está estranhamente omisso nesta evocação. E, apesar de justificada pelo realizador (na conversa após o filme), esta ausência causa perplexidade, por ser evidente a filiação de Goulet na estética da “poesia da terra” de Reis, e por ser este um perfeito metafilme dessa mesma formulação de cinema. Quem não conheça o cinema de Reis não o poderá perceber, e é dessa referência que se sente a falta.

Em compensação, temos Paulo Rocha e o seu filme Mudar de Vida (com diálogos escritos por António Reis) que é projectado perante a população participante quase 40 anos depois, com a presença do realizador. A longa (e retomada) sequência que alterna planos do filme original e lentos travellings através da coxia, enquanto a projecção decorre e registando as reacções do público, condensa o tema central de Encontros, ao mostrar o passado projectado no presente. A voz de Paulo Rocha explicando que quis registar o modo de vida dos pescadores no litoral nortenho antes que acabasse - para deixar memória – expõe verbalmente o propósito deste outro filme que o envolve. Um filme de paisagens belas e intemporais e suspiros de solidão. Um filme sobre um passado em vias de extinção.

(Visto no Doc’s Kingdom em Serpa.)

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