20 junho 2006

Cinema em directo



O programa do Doc’s Kingdom de quinta-feira passada foi cheio de filmes e reflexões que o seu organizador, José Manuel Costa, sintetizou na paráfrase “um ponto de vista sobre o mundo é um ponto de vista sobre o cinema” - que inverte os termos da equação mais corrente, dirigindo assim a atenção para a “existência de um princípio construtor por detrás de cada plano” e suscitando o diálogo sobre as “metodologias recentes do cinema directo”.

O filme The City Beautiful (2003), do documentarista indiano Rahul Roy, acompanha a vida de duas famílias pobres (de Nova Deli) cujos homens perdem o emprego de tecelões – surgindo o problema de aceitarem ou não que as mulheres vão trabalhar. Outras temáticas atravessam o filme: o quotidiano e as relações familiares, as razões macroeconómicas que tornam inviáveis os meios de produção artesanais, os desenganos sofridos.

O método de Roy é ainda mais directo que o de Wiseman, pois a sua proximidade aos personagens é muito maior: pela pequenez do espaço doméstico (porque a família não é uma instituição como as outras) e sobretudo porque Roy mantém com as pessoas filmadas uma interlocução discreta que sustenta o diálogo (como se fosse alguém da família que com elas fala) e permite conhecê-las mais intimamente. Esta interacção e a possibilidade de filmar as mulheres sozinhas dentro de casa (obstáculo que o realizador explicitou após a projecção) baseiam-se numa confiança conquistada - que dá origem a um retrato de família sensível e forte.

À Flor da Pele (2006), de Catarina Mourão, observa também um microcosmo – o das crianças de um pequeno bairro social no Porto – durante um período de tempo balizado pelo campeonato de futebol Euro 2004. Os jogos, as brincadeiras e as conversas das crianças – aqui observadas de perto – remetem para a questão da reprodução social e da mimesis de valores – o entusiasmo pelo futebol, ou a separação entre papeis femininos e masculinos - que as crianças tão facilmente revelam - apesar do filme se dispersar num certo folclore que mistura futebol, quotidiano, personagens castiças e vox populi.

O mais curioso é que, sob o olhar escrutinador das crianças, o observador transforma-se em observado, alvo de comentários e perguntas pessoais que a realizadora não descartou na montagem, preferindo assumir a qualidade "à flor da pele" deste contacto e desenvolver a interlocução como recurso directivo para questões que não surgem espontaneamente: por exemplo, perguntar às crianças quais são as suas brincadeiras habituais, em vez de as filmar a brincar; questioná-las sobre o mundo («como que achas que será daqui a 3000 anos?») em situação quase de entrevista, na qual as crianças assistentes estão em posição recuada atrás da câmara, mas tentando fazer interferências.

Neste jogo um tanto ambíguo de pontos de vista, a transparência do método revela paradoxalmente uma opacidade, que só a conversa com a autora tornou clara, após a projecção, quando explicou o que ficou de fora da montagem: por exemplo, a forma por que um dos miúdos, que inicialmente lhe parecera secundário, acabou por se destacar; ou a crueldade dos amigos fazendo-o alvo de troça.

Ao contrário dos anteriores, o filme de Pedro Sena Nunes sobre a aldeia de pescadores da Meia-Praia (Algarve), usa a interlocução como recurso estruturante da sua indagação acerca da identidade destes habitantes chamados de “índios” desde a canção de Zeca Afonso. Sempre em volta dessa hipotética identidade, o realizador assume no título escolhido – Elogio ao Meio - a justificação para o ponto de vista que prefere a recriação do mito à observação do real. A utilização do dispositivo de entrevista formal, típico da reportagem, tem como principal consequência não conseguir aproximar-se da verdade das personagens nem apalpar a vida real.

Dos dois filmes portugueses guardei estas impressões: a dúvida de não ter havido uma relação suficientemente aprofundada com os protagonistas; a indefinição dos seus métodos e objectivos; e a facilidade em trocarem a persistência do cinema-directo pela imediatez do "em directo".

(Visto no Doc’s Kingdom em Serpa.)

3 comentários:

Nuno Pires disse...

Muito obrigado por este ponto de vista sobre estes três filmes. Como poderás ver no meu "Uma vida nova", também encontramos esta mistura de entrevistas e de cinema directo. Uma da questões que se pode levantar com o sistema da entrevista dentro de um documentário, é a da verdade. Quando o sujeito de um documentário está a responder a perguntas feitas pelo realizador, podemos pensar que o espectador está duplamente manipulado (pelas perguntas e pelas respostas). No entanto, no meu caso, penso que este ponto de vista depende da situação; quando se trata de um documentário "auto-biográfico", e portanto quando faço perguntas aos meus pais, penso que este "problema" está fora de jogo, porque estamos num caso de íntimade e de confiança absoluto entre os dois interlocutores. Mas espero pelas tuas impressões para confirmar ou infarmar esta sensação minha.

Leonor Areal disse...

Também espero para ver o teu filme, mas aviso-te: não há dois espectadores com a mesma opinião... Na Cinemateca, terça, 18 de Julho, às 21h30.

Nuno Pires disse...

E estou anxiouso por receber o maior número de opiniões! ;)