26 maio 2006

Reincidência



É extraordinário que Pierre Perrault, filmando repetidamente a mesma Île-aux-Coudres e sua região, consiga continuar a surpreender-nos. É como se cada filme concluído o deixasse ainda insatisfeito porque ainda há mais a contar. Assim, anos depois de ter filmado em 1959 a construção da última “goleta” ou escuna, sentindo talvez que faltava vida a esse filme, repetia o tema em “Les voitures d’eau” (1968), agora usando o método do som directo e dando a palavra aos marinheiros protagonistas que, desta vez, constroem apenas uma canoa.

Descartando os trejeitos de poesia (“neve verdejante”, “areias silenciosas”) que enformavam os primeiros filmes para televisão, Perrault olha agora mais prosaicamente para a fissura de tempo que se abre diante dele e concentra-se nas questões de sobrevivência da economia artesanal e na pressão da mudança que se manifesta nas banais conversas do quotidiano dos pescadores-armadores-capitães-carpinteiros, seja em reacção à greve dos estivadores, seja na equação dos direitos à educação: “a educação até ao 12º ano é uma necessidade humana”, diz um dos homens, “só depois disso é que começam os estudos” (estava-se em 1967).

É um filme, tal como o anterior “Le règne du jour”, baseado na palavra alheia, não apenas pela importância que lhe concede, mas sobretudo na sua apropriação como método de montagem: a palavra é cortada em fatias laminares e sequenciada de modo a construir um argumento verbal ideologicamente moldado pelo realizador. É raro ou mesmo inexistente que as situações coloquiais se desenvolvam com fluidez, são sempre segmentadas e atravessadas de outros fragmentos de discurso directo metidos a talho ao serviço de uma demonstração em discurso indirecto mais intelectual. Praticamente não há planos-sequência, quando muito há planos-emergência, em que a câmara, hábil e ágil, sulca os ares em busca da palavra solta apanhada na rede de pesca aos grandes planos. Apesar da grande espontaneidade que transpira dos momentos conviviais e humanos, há qualquer coisa demasiado artificial nesta modelagem. Que mais surpresas nos trará esta insatisfação...?

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