25 maio 2006

Imagem sonora



A obra de Pierre Perrault (vista até agora no ciclo em curso na Cinemateca) apresenta surpresas contínuas, as surpresas naturais de reconhecer como um autor evolui e muda a sua linguagem, menos do que muda a ideologia ou mensagem, embora esta seja afectada por aquela.

Os primeiros filmes televisivos, sujeitos possivelmente às limitações do meio, das técnicas e dos objectivos, expressavam-se através de um discurso para-poético na voz off do seu autor, palavrosamente manipulador de sentimentos e valores.

O assumido primeiro filme, “Pour la suite du monde”, co-realizado por Perrault e Brault, já usava as possibilidades do som directo, tendo subjacentes as mesmas premissas de preservação da memória nacional e dos valores tradicionais da comunidade de pescadores. Era inovador na apropriação respeitosa da palavra do outro como acto de fabulação, aquilo «que Perrault chama “o flagrante delito de fazer lenda”»; e inovador ainda na maneira de contar a lenda recriando num documentário formas narrativas típicas da ficção.

Em “O reinado do dia” (1965-67), Perrault oferece aos seus protagonistas favoritos, a família Tremblay, uma viagem a França, ao “berço dos seus ancestrais”. Na montagem, justapõe e contrapõe o registo da viagem ao seu relato filmado após o regresso. Além dos temas da vida camponesa que se destacam como cultura comum e de contacto entre canadianos e franceses – e que são o pomo das comparações conversadas e relatadas – há um carácter de peregrinação que é sobretudo assumido pelo ancião pai de família – e pelo realizador – que releva dos mesmos anteriores pressupostos de uma procura de identidade nacional.

Perrault, optando por uma estrutura de alternâncias, contrapontos, comparações e redundâncias (que tornam, na minha opinião, o filme excessivamente confuso), desfaz a sequência linear da narrativa, criando capítulos temáticos, e apoia-se vincadamente na palavra, desta vez trabalhando o discurso directo das personagens e transformando-o em discurso-indirecto-livre (na terminologia de Pasolini). Como diz Deleuze (citado em Ainda não começámos a pensar): «O acto de palavra mudou de estatuto. Se nos referirmos ao cinema “directo”, encontramos plenamente este novo estatuto que dá à palavra o valor de uma indirecta livre: é a fabulação.»

Neste filme, usando as palavras de Deleuze, «é verdade que o cinema moderno implica a ruína do esquema sensorial motor, o acto de palavra já não se insere no encadeamento das acções e reacções e já não revela uma trama de interacções. Curva-se sobre si mesmo, já não é uma dependência ou uma pertença da imagem visual, torna-se inteiramente uma imagem sonora, toma uma autonomia cinematográfica e o cinema devém verdadeiramente audiovisual.»

Mas, no primeiro filme, o acto de palavra insere-se no encadeamento das acções e reacções e revela uma trama de interacções, razão pela qual acho, como defendi abaixo, que é uma obra que pertence ainda ao cinema clássico, de cujas leis o segundo filme se libera. Nessa evolução estética, Perrault liberta-se também da anterior perspectiva tradicionalista, por meio desse jogo de confrontos e de comparações culturais em que participam as personagens, questionando-se entre si e introduzindo a divergência de opiniões entre marido e mulher e filhos e netos e amigos. E vêem-se os traços de inquietação de Alexis Tremblay em relação ao futuro – finalmente assumidos por Perrault –, a sua resistência à mudança de hábitos e valores das gerações mais novas, as suas incertezas em relação às máquinas em geral, às motas de neve, aos estudos, às mulheres de calças, etc. Entre as memórias procuradas, recolhidas e imaginadas e o futuro encarado como um mundo louco, este filme é muito mais cinema-verdade.

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