23 maio 2006

Imagem falada



Os primeiros filmes de Perrault (de que é autor, mas ainda não realizador) pertencem a uma série de programas de 30 minutos feitos para a televisão canadiana, com o intento de caracterizar o “Pays de Neufve-France” e preservar traços de cultura e civilização que no final dos anos 50 estavam já em vias de desaparecimento: a construção colectiva de escunas de madeira, a travessia de bote da superfície de água coberta de pedaços de gelo em fases diferentes de consistência, a migração estival para as ilhas, levando todos os haveres em barcos e as casas a reboque, a caça ao lobo-marinho que irá alimentar os cães, etc.

Sendo filmes muitos bonitos e muitos nostálgicos, testemunhos etnográficos únicos de modos de produção artesanais, omitem no entanto tudo o que tem a ver com a mudança social que levou ao abandono das tradições camponesas, as suas dificuldades, as migrações para as cidades, ou as tensões sociais latentes nas pequenas povoações cujo modo de vida estava em declínio rápido. Portanto, tudo aquilo que em “Pour la suite du monde” (1962-1963) também não é explicado - a ausência dos adultos jovens que partiram para a cidade - tema que Michel Brault agarra numa sua ficção um pouco posterior, “Entre la mer et l'eau douce” (1965-1967), filmada na mesma ilha.

O cinema, na sua mimesis perfeita de vida, sempre se prestou a tábua de salvação para preservar um rasto do mundo em desaparecimento. Esta missão começou, neste caso, por ser um programa de rádio que, ao passar para televisão, não perdeu a componente discursiva principal. São filmes agrilhoados à sua origem literária e poética, e onde a relação da palavra com a imagem é um tanto arbitrária. Ora a palavra, por ser demasiado descritiva, é redundante; ora, sendo demasiado explicativa, se distancia da imagem que não lhe corresponde. A preponderância da palavra tem um efeito perverso: o mundo como ele é dito tem a primazia sobre o mundo que é visto.

Estes filmes ainda não têm som directo e possivelmente foram feitos com câmaras pesadas, mostrando ainda assim uma agilidade incrível e uma capacidade para recolher planos de todos os pontos de vista. A ausência de som de fundo é colmatada, além da palavra condutora, pela persistente banda sonora constituída de música folclórica. O espectador é conduzido sem poder quase respirar, sem ter tempo de ver, de perceber, de absorver, nem as imagens, nem as palavras, nem mesmo a música – sempre relegada para uma mera função de pastilha elástica para encher o fundo e para fugir ao vazio, esquecendo-se que ela também é densa e pede atenção. A acumulação de estímulos perceptivos - a imagem, a música, a voz - não deixa espaço ao espectador para fazer a sua própria reflexão, ou para contrariar a voz directiva que explica como deve ser o que é, mas não explica o que não é.

Os seus pressupostos ideológicos são o desejo de guardar registo de um passado recente, antes que acabe, e de afirmar uma identidade nacional, antes que se perca, mas não a evidência de outro pressuposto esquecido: a de que também o presente se tornará passado, no tempo de uma geração, e que não ficarão então registadas as mutações do presente.

Já lá vai quase meio século desde que estes filmes foram feitos, e isso deveria ser o suficiente para uma certa complacência e mesmo admiração, se não fosse grande parte do actual documentário-televisivo se escorar ainda sobre os mesmos truques e vícios: planos com cadência de 5 segundos, voz off autoritária, redundância ou desajuste entre palavra e imagem, sobrecarga do espaço cognitivo, mensagem ideológica subjacente, omissão das tensões inerentes ao real, personagens sem voz, recurso fácil ao depoimento directo ou entrevista.

Muitos documentários sofrem, hoje ainda, desta contradição, que é afinal a de uma nostalgia retardada que não toma o tempo e a vida como aquilo que são. Não procuram a expressão da existência humana nem aceitam a mudança permanente. Falta a estes filmes escolherem a vida, em vez de quererem transmitir ideias feitas sobre ela.

(Filmes vistos na Cinemateca)

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