14 fevereiro 2006

Re: Panorâmica

«A programação como relação construída entre salas, entre telas, entre filmes, poderá constituir o campo de uma importante resistência ao tal fluxo que corre, concedendo a possibilidade de uma “presença de espírito”. A relação estabelece-se já não dentro de um pensamento, mas entre pensamentos, entre discursos. Torna-se possível falar sobre.» A citação é de um texto muito interessante da Inês Sapeta Dias, que foi coorganizadora da mostra Panorama, e faz parte de uma argumentação de resposta, no blogue Ainda não começámos a pensar, às críticas feitas no debate final e abaixo reportadas por mim.

Concordo em grande parte com o articulado da Inês, mas acho a conclusão - contra o proteccionismo ao espectador - muito radical. Antes, porém, quero esclarecer que o adjectivo "cobarde" aplicado à falta de selecção não foi usado por mim nem por ninguém. Pelo contrário, tal como ISD, acho que foi uma aposta muito corajosa. E acho corajoso também conseguir ver horas seguidas de filmes (como eu fiz em alguns dias) e permanecer na sala só para poder "falar sobre". Sei que não estão todas as pessoas a isso dispostas. Há uma espécie de contrato implícito entre o público (uma entidade colectiva bastante numerosa, mas cujos caprichos são mais ou menos insondáveis) e os programadores: o público espera destes que, dado o seu trabalho e conhecimento alargado, lhes dêem a ver coisas diferentes e interessantes. Só um espectador militante está disposto a fazer o trabalho que cabe ao programador: a seca de ver maus filmes.

Talvez possa parecer agressivo eu ter dito que ver maus filmes prejudica a saúde. Nem todo o espectador quer ser um herói, a maioria quer apenas entretenimento. Que atrás disso se lhe dê matéria para pensar, comparar, criticar, mais satisfação terá. Mas desiludi-lo, ou transformá-lo à força num estudante de cinema, já pode ser abusar dessa relação de confiança implícita no contrato com a entidade programadora. O que faz o público quando perde a confiança? Desiste. A ideia de «criar públicos onde eles já existem» é um paradoxo. Entre ter na sala 20 aficcionados resistentes ou 200 convertidos, venha a Videoteca e escolha.

P.S. Está latente, na nossa divergência, a minha defesa da "satisfação" do espectador e a opção da Inês por «dar-lhe armas, criar-lhe dúvidas (...), fazê-lo sair da cadeira, indignado, fazê-lo sair, reagir». Devemos levar este antagonismo à letra? Eu falo de uma satisfação relativa. E a indignação até onde poderá ir?

2 comments:

ISD said...
Os nomes das coisas... Notas soltas em jeito de contra-resposta

* Quando se diz que é preciso ter a coragem de programar (ou selecionar?) e faltando, como foi dito, esse acto de programação no PANORAMA, percebo que o que quer ser dito é que faltou coragem à organização. Cobarde é aquele a quem falta coragem.

* A seca de ver maus filmes é trabalho de programador e não de espectador. Não faltará a especificação: programador de festival? Uma Mostra tem um cariz diferente, não tem os objectivos de um festival, tem outros. E apesar de não apontarem no sentido do marketing são importantes e necessários. Parece-me imprescindível existir uma Mostra como o PANORAMA, onde é possível ver fronteiras e contornos, e não só o campo fechado e arrumado, objecto final de uma escolha.

* Aficcionados são os que vão ao Futebol, convertidos os que vão à Igreja. Não vejo que a Videoteca tenha que escolher entre seja o que for...

* Sentimos satisfação depois de comer uma boa refeição, nem muito leve, nem muito pesada, boa. Pois, não sei se gosto da ideia de um espectador satisfeito. Mas também não o pretendo apenas indignado. Talvez fosse mais correcto sublinhar a ideia de reacção. O que me assusta é que se engulam filmes por aquilo que é dito sobre eles, sem mastigar, sem saborear. Esse engulir resulta em espectadores satisfeitos, sim. Mas não será importante um sítio para criar espectadores capazes de efectuar as suas próprias escolhas, descobrir por eles próprios coisas novas e boas, ou coisas intragáveis que os fazem sair da sala? O que digo é que tem de exisitir esse lugar aberto, onde a programação assenta numa organização, numa combinação para melhor servir a possibilidade dessa escolha, dessa discussão, dessa descoberta em relação (e da relação). O PANORAMA pareceu-me revelar a necessidade desse sítio (apesar das pessoas que sairam indignadas da sala). Pareceu-me existir uma boa resposta ao desafio lançado... mas claro, não meço a boa resposta matematicamente.

16/2/06 12:53 PM

LA said...
Notas soltas, em jeito de conversa... e para afinar o nome das coisas (evitando agora as metáforas):

* eu creio que houve um acto de programação, mesmo não havendo selecção, o que aliás foi bem defendido pela Madalena M.; essa programação foi boa, apenas foi questionada a ausência de selecção;

* uma mostra ou um festival é praticamente a mesma coisa do ponto de vista do espectador que vai ver filmes a uma sala; poderão ser conceitos diferentes de programação, concordo;

* mas então, tal como estava a faltar uma mostra de tudo, está ainda a faltar um festival de documentário português que faça jus aos filmes e aos que os fazem;

* a ideia de "fazer jus" implicará, parece-me, uma selecção dos que merecem ser vistos por alguma razão;

* por outro lado, a ideia de que o público engole os filmes conforme o que ouve dizer deles não é muito exacta: no Doclisboa - onde a selecção é mais um critério de exclusão, logo, injusto - muita gente saiu indignada com os filmes seleccionados;

* um programador tem sempre que pensar no público, pois este é o seu interlocutor;

* o público é sempre heterógeneo e tem muitas razões diferentes para gostar ou não;

* o programador é que tem que ser coerente e defender o seu trabalho junto do público;

* por vício (talvez) da sociedade do espectáculo, o público mede-se em número, não em comportamentos nem reacções;

* depois há um público especializado (aquele que vai aos debates);

* o programador tem lidar com esses números tanto como com as reacções do público especializado...

16/2/06 3:21 PM

1 comentário:

Leonor Areal disse...

Notas soltas, em jeito de conversa... e para afinar o nome das coisas (evitando agora as metáforas):
* eu creio que houve um acto de programação, mesmo não havendo selecção, o que aliás foi bem defendido pela Madalena M.; essa programação foi boa, apenas foi questionada a ausência de selecção;
* uma mostra ou um festival é praticamente a mesma coisa do ponto de vista do espectador que vai ver filmes a uma sala; poderão ser conceitos diferentes de programação, concordo;
* mas então, tal como estava a faltar uma mostra de tudo, está ainda a faltar um festival de documentário português que faça jus aos filmes e aos que os fazem;
* a ideia de "fazer jus" implicará, parece-me, uma selecção dos que merecem ser vistos por alguma razão;
* por outro lado, a ideia de que o público engole os filmes conforme o que ouve dizer deles não é muito exacta: no Doclisboa - onde a selecção é mais um critério de exclusão, logo, injusto - muita gente saiu indignada com os filmes seleccionados;
* um programador tem sempre que pensar no público, pois este é o seu interlocutor;
* o público é sempre heterógeneo e tem muitas razões diferentes para gostar ou não;
* o programador é que tem que ser coerente e defender o seu trabalho junto do público;
* por vício (talvez) da sociedade do espectáculo, o público mede-se em número, não em comportamentos nem reacções;
* depois há um público especializado (aquele que vai aos debates);
* o programador tem lidar com esses números tanto como com as reacções do público especializado...