02 dezembro 2005

A crítica do olhar



Todos os filmes, e particularmente os documentários, ganham em ser discutidos, como aliás é prática corrente nos festivais. Esse debate de ideias que se sucede ao primeiro olhar, permite reflectir melhor sobre o filme, em vez de o arquivar imediatamente numa gaveta obscura da memória.

No debate que se seguiu à projecção do meu documentário Doutor Estranho Amor, levantaram-se várias divergências. Onde uns vêem desigualdade social, outros vêem integração escolar. Onde uns vêem um percurso de aproximação entre formadores e formandos, outros vêem uma fragilidade na explicitação de objectivos. Onde uns vêem uma atitude ríspida do professor, outros vêem a indisciplina dos alunos. Onde uns vêem uma turma de rapazes apaixonados por uma rapariga, outros vêem uma rapariga demasiado sedutora. Onde uns vêem o esforço e a paciência dos professores, outros acham-nos culpados pelo analfabetismo dos alunos. Outros, extrapolando, vêem um sistema de ensino em causa, um país em ruptura, uma democracia em risco. Inventar é livre.

O mais interessante é que todos têm razão. E as coisas são muito menos claras do que parecem. Num gesto de cabeça sobre um ombro de rapariga, uns vêem a ternura do rapaz, outros reparam no constrangimento dela, outros ainda encontram a representação da distância que vai entre o que diz e o que se mostra. O que só demonstra que a situação é complexa e ambígua. Não resulta daqui uma posição crítica ou ideológica evidente. Pelo contrário, a coexistência de pontos de vista diferentes é que vem propiciar a discussão colectiva. O filme, assim, é também uma forma de intervenção nesse social.

Se fosse um documentário que tivesse como intenção promover um certo projecto educativo, seria um chamado filme institucional. Se fosse dirigido por uma voz off, seria possivelmente um documentário de estilo televisivo, com uma mensagem explícita de reforma social. Em qualquer dos casos, o espectador era suposto aderir e anuir. Sendo um documentário livre desses constrangimentos exteriores ou incorporados, aceita todas as interpretações e pede ao espectador uma reflexão própria.

De todas estas opiniões divergentes, o que é que sobra do “olhar pessoal” do realizador? A possibilidade de revelar as contradições inerentes ao real - em vez de revelar convicções pessoais. Este não é um filme de opinião, portanto. É um documentário de observação. Tenho a minha opinião, claro, mas vale tanto como a de qualquer outro espectador do filme. Prefiro até não a manifestar antecipadamente para não condicionar a leitura individual do filme, que, sendo um documentário, facilmente resvala para uma leitura do real preexistente.

(Porque em documentário há sempre uma realidade que suscita esse olhar. Ao contrário da ficção, onde o olhar é que suscita a criação de um real.)

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